31 de dezembro de 2009

Infinity


“O Poder do Mundo trabalha sempre de forma circular e tudo tende a ter a perfeição do círculo. O céu é redondo e a terra também, bem como as estrelas. O vento rodopia e os pássaros constroem seus ninhos de forma circular; as leis deles são semelhantes às nossas. Até mesmos as estações seguem uma grande roda nas suas mudanças, voltando sempre ao ponto de partida. A vida do homem é um círculo: de uma infância à outra. E assim é em tudo onde o poder se movimenta."

Alce Negro (1863-1950) Xamã Oglala Sioux


O Ouroboros simboliza o ciclo da evolução voltando-se sobre si mesmo. O símbolo contém as ideias de movimento, continuidade, auto fecundação, e conseqüentemente, do infinito. A imagem da serpente mordendo a cauda, fechando-se sobre o próprio ciclo, evoca a roda da existência. A roda da existência é um símbolo solar, na maior parte das tradições. Ao contrário do círculo, a roda tem certa valência de imperfeição, reportando-se ao mundo do futuro, da criação contínua, da contingência, do perecível.

O ouroboros costuma ser representado pelo círculo. O que parece indicar, além do perpétuo retorno, a espiral da evolução, a dança sagrada de morte e reconstrução.

A grande Serpente Universal é o símbolo do eterno retorno, da sabedoria, da união e complementariedade dos opostos, representando a ruptura da evolução linear.

Imagem: Ouroborus by Zarathus

27 de dezembro de 2009

Perspectiva



Tua passagem se fez por distâncias antigas.
O silêncio dos desertos pesava-lhe nas asas
e, juntamente com ele,
o volume das montanhas e do mar.
Tua velocidade desloca mundos e almas.
Por isso, quando passaste, caiu sobre mim tua violência
e desde então alguma coisa se aboliu.
Guardo uma sensação de drama sombrio,
com vozes de ondas
[lamentando-me.
E a multidão das estrelas avermelhadas
fugindo com o céu para longe
[de mim.
Os dias que veem são feitos de vento plácido e apagam tudo.
Dispensam a sombra dos gestos sobre os cenários.
Levam dos lábios cada palavra que desponta.
Gastam o contorno da minha síntese.
Acumulam ausência em minha vida...
Oh! um pouco de neve matando, docemente, folha a folha...
Mas a seiva lá dentro continua, sufocada,
nutrindo de sonho a morte.
(Cecília Meireles)


23 de dezembro de 2009

Quero escrever o borrão vermelho de sangue...




...Com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.

Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.

Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.


Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.

(Clarice Lispector)

20 de dezembro de 2009

Treva e Luz



Neste pélago escuro em que te afundas,
Longe das sombras autorais e amadas,
Sentes o peito em ânsias revoltadas,
Diluis teu peito em sensações profundas.
Mas, eis que emerges, luminosa, às fundas
Águas do mar das glórias obumbradas,
E, ante o branco estendal das madrugadas,
Nua, em banho ideal de amor te inundas.
Agora, à luz das alvoradas santas
Ungem-te o corpo redolências tantas,
Que, ao ver-te nua, o Mundo se concentre,
E a lua, a Virgem Mãe dos céus escampos,
Que beija a terra e que abençoa os campos,
Beije-te o seio e te abençoe o ventre!

(Augusto dos Anjos)

17 de dezembro de 2009

Pallida Luna



És do Passado! Vieste d'alvorada
N'asa dos elfos pela Morte espalma...
Cantas... e eu ouço esta berceuse calma
Da harpa dos mundos ideais do Nada!
Ergue o Missal brilhante de tu'alma,
Mas nessa elevação mistificada,
Vem, que eu te espero, Deusa constelada
Desce, anêmona êxul que o Céu ensalma!
Venhas e desças, Lua dos Martírios,
Desças, mas venha pela unção dos lírios.
Visão de Ocaso de enluaradas comas,
Vaso de Unção descido dos espaços,
Para ungirmos nós dois, os nossos paços,
Na tule idealizada dos aromas.
(Augusto dos Anjos)

12 de dezembro de 2009

Inquietude

8 de dezembro de 2009

Jean Nicolas Arthur Rimboud


Esta semana fiz uma apresentação na faculdade sobre Arte e Transgressão. E para fazer o trabalho, eu e minha equipe escolhemos falar sobre Rimbaud, poeta francês, que foi um transgressor por excelência, pois, até hoje, nenhum poeta conseguiu aliar com tanta intensidade a transparência e o enigma.
Seus poemas eram feitos baseados em experiências da sua vida, conseqüentemente, ao transgredir a sua vida, ele transgredia a sua arte, que era a poesia.
Até hoje Rimbaud é fonte de inspiração para inúmeros artistas, e ele e sua poesia continuam como fonte de mistério para a modernidade. A poesia de Rimbaud se caracterizava pela heterogeneidade radical, pois, ele nunca era o mesmo, nunca se repetiu. Em seus poemas, ele procurava sempre romper com qualquer tipo de tradição literária e cultural. Rompia com qualquer gênero poético, literário e até gramatical em sua escrita. Rimbaud afirmava que um dos pontos mais importantes, mais essenciais para o seu projeto poético era a busca do desconhecido através do desregramento de todos os sentidos, o que ele chama de videncia, como afirma em sua obra Cartas do Vidente em 1871:

"O poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e estudado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, prova todos os venenos, para guardar apenas a quintessência. Inefável tortura em que é necessária toda a fé, toda a força sobre-humana, quando ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito — e o supremo Sábio! — Pois chega ao desconhecido! Ele cultivou sua alma, já rica, mais do que qualquer outro! Ele chega ao desconhecido, e ainda que, enlouquecido, acabe perdendo a inteligência de suas visões, ele as viu!"

Porém, o desconhecido a que Rimbaud se refere não é uma desconhecido que se possa conhecer, e sim o desconhecido absoluto, que não será possível alcançar através de nossas faculdades sensoriais regradas, e sim com a desordenação delas. E isso era feito não como um delírio incoerente de previsão do futuro, mas, tomando como ponto de partida o próprio presente, na intenção de ter uma outra percepção superior da realidade na qual se está inserido.

Como conseqüência do desregramento dos sentidos Rimbaud alcançava o que ele chamava de Eu é um outro. Isso significa, antes de mais nada, que o eu rimbaudiano é múltiplo, vário, escorregadio, móvel, fragmentado; ele nunca está onde se quer, onde se pensa, pois é sempre outro, e escapa pelos dedos de quem tenta fixa-lo. À luz dessa constatação, qualquer tentativa de determinação seja do eu rimbaudiano seja de sua obra a partir desse eu — e mesmo qualquer determinação em si — perde, de saída, essa indicação fundamental dada pelo próprio poeta: Eu é um outro.

Nota-se que não se trata de Eu sou um outro nem de Ele é um outro, expressões que, embora pouco comuns, ainda pertencem a um enunciado homogêneo (eu sou e ele é não produzem nenhum tipo de heterogeneidade). Assim também ele afirma em Cartas do Vidente:

"Agora, eu me encrapulo o máximo possível. Por quê? Quero ser poeta e trabalho para tornar-me vidente: Você não compreenderá nada e eu quase que não saberia explicá-lo. Trata-se de chegar ao desconhecido através do desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, ter nascido poeta, e eu me reconheci poeta. Não é de modo algum culpa minha. É errado dizer: Eu penso: dever-se-ia dizer: sou pensado. — Perdão pelo jogo de palavras"

Qualquer tentativa de atribuir algum estilo ou cultura a Rimbaud seria diminuir a sua voz, enfraquecer suas descobertas, enfim, atenuar o que há em sua escrita de mais radical, que seria perder essa indicação fundamental pelo poeta: Eu é um outro. Rimbaud não fazia distinção entre bem e mal, feminino e masculino, inferno e paraíso, havia um apagamento de fronteiras entre o verso e a prosa, as palavras eram usadas não pelo significados, mas pelas sensações, pela sinestesia, os versos eram livres, negava qualquer tradição ou herança, tinha o estranhamento poético.

O que também mais fascina em suas obras foi o fato de terem sido feitas na sua juventude entre os 14 aos 19 anos, porém a linguagem e o conteúdo literário apresenta tamanha grandeza que parecem terem sido escritos por um sábio ancião. Aos 20 anos mais ou menos, Rimbaud pára de escrever.

Rimbaud nasceu em 20 de outubro de 1854, Charleville e morreu em 10 de novembro de 1891, Marselha aos 37 anos. Sua principais obras foram: Uma Temporada no Inferno e Iluminações (1973), Cartas do Vidente e Poesias (1871).

Tudo isto aqui descrito, faz de Rimbaud um poeta atemporal na arte e na história, transgressor na sua vida e na sua arte, pois como o mesmo dizia: "a minha arte é a minha vida"

Salve Rimbaud!!!!

Mau Sangue

"Herdo de meus antepassados, os gauleses, os olhos azuis-claros, a
fronte estreita, e a falta de jeito para a luta. Sinto que minhas roupas
são tão bárbaras quanto as deles. Apenas não unto a cabeleira.
Os Gauleses foram esfoladores de animais, queimadores de ervas, os
mais inábeis de seu tempo.
Deles, eu herdo: a idolatria e o amor ao sacrilégio; - oh! todos os
vícios: cólera, luxúria, - magnífica, a luxúria; - sobretudo mentira e
preguiça.
Detesto todas as profissões. Mestres e oficiais, todos campônios,
ignaros. A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado. -
Que século de mãos! - Jamais me servirei das mãos! Depois, a
domesticidade leva demasiado longe. A honradez da mendicidade
exaspera-me. Os criminosos repugnam-me como castrados: quanto a mim,
estou intacto, e pouco se me dá.

Mas quem fez tão pérfida a minha língua que, até agora, tem guiado
e protegido a minha preguiça? Sem saber utilizar-me do corpo, e
mais ocioso que um sapo, tenho vivido por toda a parte. Não há
família na Europa que eu não conheça: - Estou falando de famílias
iguais à minha, que devem tudo à declaração dos Direitos do
Homem – Tenho conhecido cada filho-família!"

(Poema da obra: Uma Temporada no Inferno. Rimbaud, 1873)

5 de dezembro de 2009

Rubaiyat III



No céu, a mão esquerda da alvorada; eu sonho.
Na taberna, uma voz escuto na algazarra
- Despertai, meus pequenos, e enchei bem o copo
antes que seque o vinho da vida em sua jarra.


Ah! Enche o copo! De que serve repetir
que o tempo sob os nossos pés já vai fugindo?
O amanhã não nasceu e o ontem já morreu,
porque me hei-de importar, se o dia de hoje é lindo?


E ao côncavo invertido que se chama o céu,
sob o qual rastejaram o vivo e o que morreu,
não ergas tuas mãos, pedinte. Ele é impotente
no seu girar, tal qual o somos tu ou eu.


O dedo que se move escreve, e, tendo escrito,
se vai. E toda a argúcia e piedade, entretanto,
não o trarão de volta a mudar meia linha,
nem as palavras podes apagar com o pranto.


E se o vinho que bebes, o lábio que oprimes
findam nesse nada que a tudo dá sumiço,
imagina, então, que és; não podes ser senão
o que hás-de ser - nada! Não serás menos que isso.


Façamos o que inda há por fazer
antes que também nós ao pó vamos enfim.
O pó vai para o pó, sob o pó vai jazer
sem vinho, sem canções e sem cantor... sem fim.


É tudo um tabuleiro de noites e dias;
os homens são peças, e o fado temerário
com elas joga, e move, e toma, e dá o mate,
e uma a uma as recolhe, e vai guardar no armário.

Façamos mais do que inda há por fazer

antes que também nós ao pó vamos enfim.
O pó vai para o pó, sob o pó vai jazer
sem vinho, sem canções e sem cantor... sem fim.


(Omar Khayyam)

2 de dezembro de 2009

Canção



Pus meu sonho num navio

e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e meu navio chegue ao fundo
e meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas coordenadas,
meus olhos secos como pedras
e minhas duas mãos quebradas.

(Cecília Meirelles)

1 de dezembro de 2009

Perfumes

Perfumes de flores

Perfume de anjos...

Aromas que me envolveram

Em momentos de ternura tão breves.


Perfumes que me lembram morte

De entes queridos...

E de sonhos que tive que enterrar.

E com eles, enterrei parte de mim...


Aromas que me lembram poemas, arte...

Feitas por corações despedaçados...

E almas marcadas,

Poemas como este...


Às vezes sou surpreendida com perfume de flores, rosas...

Que não sei de onde brotam.

Sinto-me vazia...

E estas palavras confusas são as únicas que me saem.

(By Morgana)

27 de novembro de 2009

Não me acordem...



Não me acordem
Deixem-me sonhar que é possível
Realizar o impossível!
Restaurar a desordem.

Deixem-me sofrer
Com o que digo necessário
Construir um santuário
Chamar-lhe edificação, polimento
Guardar tudo em esquecimento

Deixem-me acreditar
Que não será complicado
Que não será sempre…
Inesperadamente ausente
Ai que esperança em tê-lo presente

Deixem-me imaginar
Torna-lo realizável
Lutar
Sim, sou incansável!

Eu sei que apenas a meus olhos
É lindo
Deixem-me cega
Sorrindo.

Mas não deixem que me matem
Que desatem, que me explorem
Para uma qualquer vontade

Que me encham de maldade
Arderia tudo em mim
Seria simplesmente o meu fim…

(Catarina Portela)

"Os que sonham de dia são conscientes de muitas coisas que escapam aos que sonham apenas à noite."
(Edgar Allan Poe)

23 de novembro de 2009

O canto do anjo vermelho



Um blues esfarinha os ossos da saudade


Apenas o temor me abriga nessa noite sem esperança

Onde estão as mulheres verdes?
Onde estão as mulheres algas?
Onde está o gibão anti-radioativo para desarmar a cabeça-dinamite do século?

A estrada tem fome, talhos e atalhos para os príncipes da paranóia
São dez e cinqüenta e quatro, posso morrer confortada pela ausência de olhares

Estou em casa, meu sono está morto
E as mentiras soterradas em minhas unhas
Um blues é um atalho para a sobrevivência
ou esquecimento

O amor é a violência do assassinato
O desespero é o sangue do misticismo
Assim como a noite é a estrela da fuga
E o escuro um daimon arcaico

Há dias que estou em transe
Aspirando o álcool prostituído dos postos de combustível
dirigindo meus sonhos no interior da valise das caveiras
e ruminando essas digitais impressões minerais

Há anos que estou amendrontada
E nenhum raio me guia para nenhum território pacífico
Ainda posso suicidar este corpo que não me pertence
Mas prometi ao deus dos espelhos que não o faria

Descobri esta arma enterrada nas cinzas de meus pulmões
Morrerei como uma coruja que antes do parto tratou de profetizar sua própria morte
Ou como galo que pela manhã canta o velho sol esquecido

Em minhas veias nenhuma morfina foi encontrada
nenhum metal precioso ou equivalente
Em minhas veias foi encontrada a ira e a herança
a dor e a nudez de um anjo

O mar se curva perante a aurora
no altar de meus pesadelos
só há agora pecados e automóveis
e a poeira das vestes desfiguradas

Ruge a sombra, ruge a fera
ruge o sino assombroso da catedral
Nunca serei fuzilada
a menos que o crepúsculo se instale no coração do meio dia

Meus braços foram criados para empunhar pás de areia
para enterrar entes queridos
E se meu hálito recende à cachaça
isso é melhor que não ter hálito nenhum

Espectros de caleidoscópios girando entre ressentidas estrelas
qual os ponteiros de um relógio fúnebre
ou de um mirar vazio no horizonte
Assim é a vida: sina de telefone que toca insistentemente sem que ninguém atenda

Nos andes o frio me aguarda
Sóbrio e sombrio como uma língua desconhecida
Em busca de um beijo ou da garganta aberta do inimigo
Somos todos a suavidade de um deus que dança
Escatológicos signos de uma relva que amanhece
antes mesmo de nascer.

(Nuno Gonçalves)