27 de março de 2010

Na Floresta


Na floresta não existe nem rebanho, nem pastor.
Quando o inverno caminha segue seu distinto curso como faz a primavera
Os homens nasceram escravos daquele que repudia submissão
Se um dia ele se levanta e lhes indica o caminho, com ele caminharão

Dá-me a flauta e canta.

O canto é o pasto das mentes e o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor.

Na floresta não existe ignorante ou sábio.

Quando os ramos se agitam a ninguém reverenciam.
O saber humano é ilusório como a cerração dos campos que se esvai quando o sol se levanta no horizonte.

Dá-me a flauta e canta.

O canto é o melhor saber e o lamento da flauta sobrevive ao cintilar das estrelas.


Na floresta só existe lembrança dos amorosos.

Os que dominaram o mundo e oprimiram e conquistaram seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos.
Conquistador entre nós é aquele que sabe amar.

Dá-me a flauta e canta.

E esquece a injustiça do opressor.
Pois o lírio é uma taça para o orvalho e não para o sangue.


Na floresta não há crítico, nem censor.

Se as gazelas se perturbam quando avistam o companheiro a águia não diz “que estranho!?”
Sábio entre nós é aquele que julga estranho apenas o que é estranho.

Ah! Dá-me a flauta e canta.

O canto é a melhor loucura e o lamento da flauta sobrevive aos ponderados e aos racionais.


Na floresta não existem homens livres ou escravos.

Todas as glórias são vãs como borbulhas na água.
Quando a amendoeira lança suas flores sobre o espinheiro não diz “ele é desprezível e eu sou um grande senhor”.

Dá-me a flauta e canta.

Que o canto é glória autêntica e o lamento da flauta sobrevive ao nobre e ao vil.



Na floresta não existe fortaleza ou fragilidade.
Quando o leão ruge, não dizem “ele é temível”.
A vontade humana e apenas uma sombra que vagueia no espaço do pensamento e o direito dos homens fenecem como folhas de outono.

Dá-me a flauta e canta.

O canto é a força do espírito e o lamento da flauta sobrevive ao apagamento do sóis.



Na floresta não há morte nem há túmulos.
A alegria não morre quando se vai a primavera.
O pavor da morte é uma quimera quem se insinua no coração, pois quem vive uma primavera é como se houvesse vivido séculos.

Dá-me a flauta e canta.

O canto é o segredo da vida eterna e o lamento da flauta permanecerá após findar-se a existência.
(Gibran)

24 de março de 2010

A Rua dos Cataventos


Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meus cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

(Mário Quintana)
...
Nas sombras...
Sem paisagens, sem lua,
sem noite, sem a música do mar...
Apenas o mesmo vazio de sempre...
... o mesmo silêncio melancólico
Apenas o mesmo sangue morto nas veias deste anjo caído.
Maldita! Acolhida pelas trevas...
Nada mais...

E se for mais um teste do destino, peço aos meus guardiões forças para lutar...
(By Morgana)

23 de março de 2010

Uma noite me balancei no céu



"Uma noite me balancei no céu.

O balanço era de flores ou de estrelas,
e suas pontas perdiam-se no Norte e no Sul,
e atiravam-me de Leste a Oeste.


Desci do sonho melancólica.
Às vezes suspiro por esse alto sonho.
Contá-lo não é nada: mas vivê-lo:
mas estar longe, numa solidão deleitosa,
mas crer, afinal, que há um tempo de viver..."

(Cecília Meireles)

Sim... Há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Este é o lado que me faz sonhar, acreditar em flores...
Acreditar que as coisas podem ser diferentes.
Crer na força de um amor verdadeiro, da justiça, da lealdade...
Que posso ter esperanças em dias melhores.
Que algum dia ouvirão em meu silêncio sombrio
e o eco do meu grito silencioso...
Que aceite e compreenda sem a necessidade das palavras
E que saiba, que apesar de um dia eu já ter sido gente grande,
que teve os sonhos estraçalhados e jogados no chão,
se depender de mim, nunca ficarei completamente madura,
nem nas idéias, nem no estilo.
Mas sempre verde, iniciante, experimental.

(By Morgana)

20 de março de 2010

Among flowers and shadows



I've found myself inside you
I know I've got different blood
This is not the same
Differently I feel dread
I drift in loneliness
Wind blows far between
I scarcely catch up with waves
Whose shape
I close in my hands
Be!
Be by my side
Then everything will start again
Take and hide me
Be
Cause I exist only for you
Among the flowers and shadows
Among the vapours wrapping thoughts
I know!
My garden will disappear
Everything will start again
From untouched sorrow
Silence covers with tears
I'm taken in by its scream
I return to the past, and there
I drift in loneliness
Wind blows far between
I scarcely catch up with waves
Whose shape
I close in my hands
Be!
Be by my side
Then everything will start again
Take and hide me
Be
Cause I exist only for you
Among the flowers and shadows
Among the vapours wrapping thoughts
I know!
My garden will disappear
Everything will start again

(Artrosis)

17 de março de 2010

Keep the fire burning



We've been through a lot together
We've seen what some will never see, you and me...
We just gotta be strong
Keep the fire burning
Gotta move on, keep our hearts from turning...
Nothing can stop us now
We're growing stronger every day in every way...
(Stryper)

Metade


Que a força do medo que tenho.
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito.
Não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito.
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe.
Seja linda ainda que triste.
Que o homem que eu amo seja pra sempre amado.
Mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida.
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas.
Como a única coisa que resta a uma mulher inundada de sentimentos.
Porque metade de mim é o que ouço.
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora.
Se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corrói por dentro.
Seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesma se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso.
Que eu me lembro ter dado na infância.
Por que metade de mim é a lembrança do que fui.
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo.
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta.
Mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar.
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer.
Porque metade de mim é platéia.
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor.
E a outra metade também.

(Oswaldo Montenegro)

Impulsividade, ansiedade...
Que fazem o coração bater forte.
Aumentam a intensidade das emoções.
Impulsividade e ansiedade, instintos que guiam meu espírito inquieto
Que geralmente me ajudam...
às vezes me prejudicam...
... e dói...


11 de março de 2010

A Mulher-esqueleto


Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais
se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os
penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus
olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.
Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos
costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua
colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de
que a enseada era mal-assombrada.
O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu — logo em
quê! — nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: "Oba, agora
peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!" Na sua imaginação, ele já
via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne
duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava
com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma
agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava
para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície,
puxada pelos ossos das próprias costelas.
O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça
calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas
do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.
— Agh! — gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se
esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. — Agh! — berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.
— Aaagggggghhhh! — uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um
salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele
atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que
havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.
O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do
peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses,
Raven, é, graças a Raven, é, e também à todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.
Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela
— aquilo — jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro,
um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia
dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
— Oh, na, na, na. — Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.
— Oh, na, na, na. — Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano.
Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio
cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra — não tinha coragem — para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.
O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava
sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima
escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas
sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o
homem.
A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela
sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e
retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela
bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.
Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do
homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou
a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!... Bom, Bomm!
Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.
— Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! — E quanto mais cantava, mais seu
corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e
gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.
Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e
se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.
Texto retirado do livro - Mulheres que correm os lobos (Clarissa Pincola Estes)