Um blues esfarinha os ossos da saudade
Apenas o temor me abriga nessa noite sem esperança
Onde estão as mulheres verdes?
Onde estão as mulheres algas?
Onde está o gibão anti-radioativo para desarmar a cabeça-dinamite do século?
A estrada tem fome, talhos e atalhos para os príncipes da paranóia
São dez e cinqüenta e quatro, posso morrer confortada pela ausência de olhares
Estou em casa, meu sono está morto
E as mentiras soterradas em minhas unhas
Um blues é um atalho para a sobrevivência
ou esquecimento
O amor é a violência do assassinato
O desespero é o sangue do misticismo
Assim como a noite é a estrela da fuga
E o escuro um daimon arcaico
Há dias que estou em transe
Aspirando o álcool prostituído dos postos de combustível
dirigindo meus sonhos no interior da valise das caveiras
e ruminando essas digitais impressões minerais
Há anos que estou amendrontada
E nenhum raio me guia para nenhum território pacífico
Ainda posso suicidar este corpo que não me pertence
Mas prometi ao deus dos espelhos que não o faria
Descobri esta arma enterrada nas cinzas de meus pulmões
Morrerei como uma coruja que antes do parto tratou de profetizar sua própria morte
Ou como galo que pela manhã canta o velho sol esquecido
Em minhas veias nenhuma morfina foi encontrada
nenhum metal precioso ou equivalente
Em minhas veias foi encontrada a ira e a herança
a dor e a nudez de um anjo
O mar se curva perante a aurora
no altar de meus pesadelos
só há agora pecados e automóveis
e a poeira das vestes desfiguradas
Ruge a sombra, ruge a fera
ruge o sino assombroso da catedral
Nunca serei fuzilada
a menos que o crepúsculo se instale no coração do meio dia
Meus braços foram criados para empunhar pás de areia
para enterrar entes queridos
E se meu hálito recende à cachaça
isso é melhor que não ter hálito nenhum
Espectros de caleidoscópios girando entre ressentidas estrelas
qual os ponteiros de um relógio fúnebre
ou de um mirar vazio no horizonte
Assim é a vida: sina de telefone que toca insistentemente sem que ninguém atenda
Nos andes o frio me aguarda
Sóbrio e sombrio como uma língua desconhecida
Em busca de um beijo ou da garganta aberta do inimigo
Somos todos a suavidade de um deus que dança
Escatológicos signos de uma relva que amanhece
antes mesmo de nascer.
(Nuno Gonçalves)